24 maio 2014

Visão de Jogo

Tinha bebido, mas foi jogar assim mesmo. Água fria na nuca, cravo na boca, óculos escuros.
Trocou de roupa num canto, escondendo-se. Subiu o barranco devagarzinho, bem depois dos outros. Nem bateu bola.
Ninguém percebeu. Ele próprio achou que já estava são.
Só que bola pra lá, bola pra cá, vira a cabeça, corre, o álcool foi subindo. E bateu justo quando ele recebeu o lançamento sozinho, a bola lá adiante, era correr, dominar e guardar.
No arranco, deu o branco na vista, o suor gelou, a corda nos pés, tropeçou, começou a catar cavaco, com o tronco inclinado pra frente, rodando e abrindo os braços pra se equilibrar, mas só conseguiu, com grande esforço, elevar rapidamente o peito e jogar violentamente a cabeça pra trás – e caiu assim: ajoelhado na meia-lua, o rosto pro céu, os braços abertos.
A bola parando perto da pequena área.
O tropel dos outros se aproximando.
Todo mundo em volta.
Ele podia se levantar. Mas se manteve na posição. Pálido, olhos estrelados, gemas pretas, claras vazadas, empapado, gélido.
Sentiu que, se tentasse, cairia. Vomitaria. Desmaiaria.
E tomaria um cacete monumental.
Antes que pensassem muito, gritou:
- Uma visão!
Zunzum, passos pra trás.
De novo, olhos ao alto, com a voz embargada e ainda mais forte:
- Uma visão!
Alguns já se assustavam. Outros desconfiavam. Ele emendou, na mesma posição, em meio às lágrimas:
- Eu vi Nossa Senhora Aparecida e Jesus de Nazaré!
O coro de “o quê?” foi quase uníssono nos da frente, com ecos em ondas nos de trás.
- Um clarão! Deus Nosso Senhor!
Todos começaram a se ajoelhar e olhar para o céu. Faziam o sinal da cruz e o em nome do pai.
Ele sentiu que acertara. Chorava muito, soluçava:
- Perdoai-nos, pecadores, ó Pai!
Muitos já aos prantos.
Viu que já dava. Deixou-se cair pra frente, a cara no barro, os braços abertos.
E ali ficou quase uma hora, até acabar o fogo.
Quando se levantou, todos ainda estavam ali, ajoelhados, olhando-o, fazendo perguntas, descrevendo.
Ele fingiu não saber de nada: “não me lembro”, “não sei”, “cê tá brincando!”, “conversa fiada!”.
Bateu as mãos no uniforme, esfregou o rosto, olhou os demais como um pastor, fez sinal para que se levantassem e conclamou:
- Vamos pro jogo!
E todos o seguiram.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)