03 março 2015

Ausência

Contra-ataque típico. Mil vezes na carreira já fez aquilo.
Na sua intermediária esquerda, escanteio contra seu time, o meia-direita na cabeça da área.
Rebote. O meia domina e ele parte antes. Sabe que a bola estará no vazio das costas dos beques adversários antes mesmo da linha do meio-campo.
É só dominar e partir com ela no pé. Ou partir direto, sem dominar, dando esticadas com toques nas passadas.
Pode chutar forte da entrada da área. Tocar de chapa com curva no canto esquerdo. Chegar mais perto, ameaçar o chute e cobrir o goleiro caído. Esperar o zagueiro vir em carreira e cortá-lo com a guinada pra dentro.
O certo é que quase sempre fez o gol. Poucas vezes perdeu.
Só que, naquela vez, na largada, antes de se aproximar da bola no ponto em que a aninharia e do qual a tangeria à meta, veio a ausência.
Os passos seguiam, mas lentos, sem peso, patinhando, desossados.
O corpo arqueado perdia tensão, ânimo, seiva.
Perdeu o senso do que o impulsionava e do que atingiria.
Nem sabe se chegou lá, se fez o gol, se desistiu, se foi atropelado pelo zagueiro, se tropeçou e saiu de maca, e nem mesmo se o que está contando ocorreu.
Tem dúvidas até mesmo quanto às mil vezes anteriores em que teria feito a jogada que o consagrou e que o distinguia de todos.
Mas não esquece a ausência.
De quê, de quem, não sabe dizer.
Só repete que foi uma ausência.
Que ele sente ainda ali, pesando, curvando o espaço e o tempo à sua volta – como uma bola que curva a rede no chute bem colocado, explica.
Às vezes enche ouvi-lo repetir a mesma história.
Mil vezes a mesma história.
E todos já sabem. Ele vem chegando perto, puxando assunto, abrindo brecha, como das outras mil vezes, e começa a corrida, aliás, a história, dos seus gols, aliás, da ausência, que o consagraram, aliás, que o imobilizou.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)