11 março 2015

Bola na Trave

Bola na trave é coisa séria.
O jogo pode estar uma porcaria, chato como um filme afegão, um engarrafamento, uma ata do Bacen – aí ela estoura, trisca, encosta, balança a trave, o pau, o ferro e tudo parece mudar.
Dali em diante cria-se a ilusão de que nada é mais o mesmo, incluindo o que ocorreu e o que ocorrerá. A história parece então refazer seus cursos.
Um sopro, uma luz, um chamado, uma chance de sucesso, um lembrança feliz, uma possibilidade, uma ousadia, uma acrobacia, um medo, um trauma, uma ameaça, a natureza morta dança e borrifa ou escurece e some.
Tem bolas na trave que assombram, estrondam e fundam certo silêncio. Como se, no escuro, ouvindo um trovão, um rugido, um canhão, uma avalanche, um terremoto, viesse o medo.
Essas em geral são secas, graves, em lances nítidos e lentos. Todos mais ou menos na sua posição no campo, um passe ou um drible, a coreografia morna, nenhum aviso – e a explosão. O goleiro nem se mexe: só esguelha ou ausculta que algo ocorreu.
Tem aquelas que, diferentemente, estrepitam e vibram, agudas. Gritam, gralham, esbugalham, esgoelam uma mudança, um risco, quem sabe.
Essas em geral saem de lances rápidos, com movimentos embaralhados, pressão na área, bate-rebate, contra-ataque populoso, falta tensa, troca rápida de passes, fila de dribles, corte seco na meia-lua, a torcida já urde uma exclamação, algo virá, não se sabe o quê – e ela estoura no pau, no ferro, e eis que morreríamos, vencia, salivo, acordareis, suspiraste, afundarão, quem sabe.
Mas é só ilusão.
Tanto aquelas quanto estas nada mudam – porém, fazem com que ouvintes, torcedores, narradores e comentaristas passem a reler o jogo e o resultado a partir delas. É interpretação. Emoção. Envolvimento. Comoção. Esperança. Temor.
Com essas bolas na trave tudo segue igual.
As bolas na trave que mudam tudo de fato são outras.
São aquelas tinhosas, lentas, leves, felinas, pingam, escorregam, sem força, passam por ali, não vemos, por aqui, escapam, enganam, escorregam, vão entrar, deixa pra lá, vão sair, traiçoeiras, ardilosas, domesticadas, matreiras, dóceis, ôpa, cadê, vem cá, espera, psiu, que nada – e pimba, ou plóft, ou téc, ou tum, dão um beijo na trave, saem, param, se deixam ficar ou desmaiar por ali.
Essas sim definem tudo. Só que imperceptivelmente.
Trata-se de muito mais do que passado e futuro.
Poucos percebem, mas são elas que prescrevem a vida e a morte.
Pagliuca, goleiro da Itália na final de 94 contra o Brasil, percebeu.
Depois do chute do Mauro Silva, deu-se conta da dimensão do que estava em jogo.
Do que significava aquele beijo que a bola dera na trave.
Foi lá e, humildemente, reverenciou-a, imitando-a.
(Texto de Luiz Guilherme Piva, autor do livro “Eram Todos Camisa Dez”)