25 maio 2016

Fechem Os Olhos

Vocês não estão vendo. Nem ninguém. Mas ali está havendo um jogo. Onde? Ora, onde! Ali, bem à sua frente. Sei: nem mesmo o campinho vocês enxergam, não é? Nem a mim, eu sei; só me ouvem.
Mas isso basta. Prestem atenção à minha voz. Olhem para a frente. Mas não de olhos abertos. Assim é que não verão nada mesmo. Façam como eu: fechem os olhos. Tapem-nos com as mãos. Pronto. Agora vocês conseguirão assistir ao jogo.
Já veem o campinho, certo? Os buracos, as descaídas, o capinzal no fundo, o barro eterno num dos cantos. A bola velha, soltando lascas de couro, meio murcha. E o bando de moleques.
Reparem bem. Não são estranhos. São vocês. Magrelos, joelhos esfolados, pés encardidos, suor por todo o corpo. Correndo sem parar. Misturando-se uns com os outros, com o mato, com o barro, brigando pela bola como cães atrás de comida. Caem, rolam, pulam, chutam, brigam, riem, se abraçam, trocam socos, falam alto.
Vejam a si mesmos quando meninos jogando bola. Pensem em vocês agora. Parecem seres distintos, eu sei. Mas não é para se espantarem. Algo ocorreu – sempre ocorre, e não há quem saiba dizer o que é – desde aqueles jogos até hoje que tornou tudo e todos aparentemente tão diferentes. Por isso é que vocês não se reconhecem. Mas agora, observando bem, já têm certeza de que são vocês, certo?
Então. Vejam o jeito de cada um. A maneira de dominar a bola, de chutá-la, de esbravejar, driblar, dar passes, comemorar. Parece inacreditável, mas é assim que vocês ainda fazem hoje. Eu sei que vocês não jogam mais bola. Mas é por isso que estou lhes mostrando esse jogo. Para que percebam que é naquele campinho, com aquela bola, com os traços e modos que vocês tinham quando eram crianças e jogavam futebol que vocês forjaram o que são hoje.
Não falo de modos físicos. Nem de fracassos e sucessos. Falo da tormenta ou da paz de espírito. Da dignidade ou da covardia. Da respiração forte ou fraca. Do olhar altivo ou baixo. Da percepção ou não do espaço e do tempo e do que fazem ao percorrê-los. Esses são os fundamentos adquiridos nas peladas da infância e que os anos transformam em caráter.
Tudo isso está ali, no jogo à sua frente. Só que vocês então não o sabiam. Muito menos o sabem hoje. E tampouco o saberão daqui por diante. Porque assim que destaparem e abrirem os olhos tudo será esquecido. E o que é invisível voltará a sê-lo.
Vocês continuarão cegos, lutando, felizes ou infelizes, atrás de algo que não sabem o que é. Mas que provavelmente é voltar a jogar aqueles mesmos jogos. Para ter a chance – impossível – de tomar consciência de que ali se decidia o que viriam a ser ou deixar de ser hoje.
Agora chega. Podem abrir os olhos.
Veem? Pois é. É isso mesmo. Nada.
Não vemos nada, não é?
Mas é normal que não vejamos.
Porque não há mais nada para ver.
Texto de Luiz Guilherme Piva, autor de “Eram todos camisa dez” (Editora Iluminuras)