20 julho 2016

Jogando por Música

Domingo cedo, indo pro jogo na caminhonete, todo mundo no samba. Ele ia calado.
Na volta, se vencessem, a mesma coisa. Cantoria e batucada. Ele, uma estátua. Assim continuava no bar o resto da tarde.
Mas, durante o jogo, cantava. Serestas, sambas-canção. Clássicos românticos e boêmios. O jogo todo.
Os adversários estranhavam. A torcida ao redor do campo, também.
Mas com o passar do jogo se acostumavam.
Não cantava alto. Nem baixo. Dava pra ouvir no campo quase todo.
E a voz dele era bonita. Um tenor macio, lírico.
Às vezes, a mesma música o jogo todo. Às vezes, uma em cada tempo.
Ficava repetindo, alheio aos gritos, reclamações, impropérios e falas dos demais jogadores e da torcida.
Meio-campo clássico, parecia reger seus passos e passes pelo andamento da melodia, pelos agudos e graves, pelas pausas.
E jogava muito. Sem ele, o time era fraco. Com ele, dominava, impunha o ritmo, criava chances, fazia gols, vencia quase sempre.
Como um maestro fazendo todos jogarem o melhor de si.
Não podia era acontecer de ele esquecer um pedaço da letra.
Quando acontecia, era uma tragédia. Ele parava onde estivesse e ficava repetindo a frase anterior da letra, coçava a cabeça, olhava pro alto, fechava os olhos, sussurrava de novo o verso anterior, e nada.
O jogo seguia e ele ficava parado onde estava.
Se lembrasse, retomava o jogo como se nada tivesse acontecido. Se não, ficava ali – ninguém o tirava porque ele poderia se lembrar a qualquer momento e isso mudaria o jogo.
Mas algumas vezes embatucava no verso, que sumia e não voltava. E aí era o desastre. O time desandava e perdia feio.
No começo era muito raro. Mas de uns tempos para cá vinha acontecendo com mais frequência. Lá pelo meio do segundo tempo, músicas tantas vezes cantadas, tantas vezes repetidas, falhavam.
E então a tragédia: ele parado, coçando a cabeça, mexendo os lábios, os olhos pra dentro e pro alto, repetindo o verso antecedente – e tome gol do outro time.
O que o pessoal começou a fazer foi aprender as músicas que ele mais cantava. Todos se puseram a decorar a maioria delas. Depois do treino, ensaiavam com o técnico, que distribuía as letras impressas para todos.
Eles iam pro jogo com o papelzinho nos bolsos se precisassem colar.
De modo que, havendo a parada na canção, alguém por perto já lhe soprava o verso faltante: “da mulher, pomba-rola que voou”, “me acompanha o meu violão”, “mas tu não flertaste ninguém”, “que o meu lar é o botequim”, “respeite ao menos meus cabelos brancos”, “jurar, aos pés do onipotente”, e pronto, ele retomava e seguia, cantando e jogando.
O problema é que agora ele surgiu com uma canção que ninguém conhece.
E a canta, a mesma, em todos os jogos. Os colegas prestam atenção, tentam decorar, já pesquisaram trechos na Internet, mas nada. Só ele sabe a letra, enorme, complicada, meio sem sentido.
Mas linda.
Todos ficam encantados.
Talvez seja a mais bela de todas as que ele já cantou.
Será composição dele?
Não ousam perguntar.
O fato é que, com a nova canção, ele tem jogado cada vez melhor.
Com isso, são jogos e jogos com vitórias seguidas – e muito samba na caminhonete e no resto da tarde.
Mas todos com um medinho lá no fundo: essa, se ele esquecer a letra, ninguém vai conseguir completar.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)