15 outubro 2016

Boca do Gol

Primeiro foi um cordão de ouro. Ele chegou pra jogar, na mesma bicicleta de sempre, e a corrente reluzia no pescoço.
Aquilo era uma roça, o campo esburacado, com tufos de capim, formigueiros, barranco na lateral. Eram pedreiros, chapas, balconistas, entregadores, marceneiros, desempregados. Que raio de cordão era aquele? Mas ninguém perguntou.
Depois, o relógio. Brilhava no sol, e todo mundo olhando.
Ele trocava de roupa atrás do muro, empacotava tudo num saco, amarrava e deixava no canto da trave adversária, mudando de lado depois do intervalo: centroavante, sempre via onde estava o embrulho.
Mais um tempo, chegou de moto. Uma cinquentinha zero. Espanto, dúvidas, inveja. O ronco, o cheiro de nova, a fumacinha no cano.
E por que não perguntavam?
Uma, porque ele era enorme, forte, carrancudo. Só sorria quando metia gol: o teclado falho, cheio de bemóis.
Outra, por isso mesmo: ele fazia muitos gols. Todo jogo era um, dois, três. E isso garantia a cerveja e o bicho que o patrocinador do time (um empresário que fora pobre e jogara nos mesmos campos na juventude) pagava no final.
E continuou: um dia, depois do gol, sorriu e os dentes estavam todos lá, brancos, brancos, com as cintilações das obturações de ouro.
E roupas, sapatos, óculos escuros, perfume, pulseira, anéis – tudo amarrado no pacote ao lado do gol.
Durante a semana, nem emprego direito ele tinha: fazia bico de todo tipo, por conta própria ou pros outros. Sempre meio sujo, desarrumado, calado, sozinho no puxado de amianto e taipa.
Só no domingo o mistério. E o silêncio.
Até que chegou de carro! Um Corcel azul claro, seminovo, com vidro fumê e rádio AM/FM, pneu com faixa branca, antena no teto.
Aí não deu pra segurar. O patrocinador o chamou no canto – temia que ele estivesse mexendo com droga, roubando, alguma encrenca.
Perguntou. Ele não respondeu.
Pressionou. Ele calado.
Deu o ultimato: “Ou explica ou está fora do time!”.
Os jogadores em volta. Temiam perder o artilheiro, mas também já estavam desconfiados com que rolo ele estaria se metendo.
Ele já tinha trocado de roupa e guardado os pertences – agora era uma malinha de mão, de couro.
Virou-se, botou de novo a roupa, entrou no carro e sumiu.
Nunca mais apareceu nos jogos nem na cidade.
O time nunca mais venceu.
E o patrocinador nunca mais viu sua esposa.
Aliás, dentista.
(Texto de Luiz Guilherme Piva)